— Sim, sou o Diabo, repetia ele; não o
Diabo das noites sulfúreas, dos contos soníferos, terror das crianças, mas o
Diabo verdadeiro e único, o próprio gênio da natureza, a que se deu aquele nome
para arredá-lo do coração dos homens. Vede-me gentil e airoso. Sou o vosso
verdadeiro pai. Vamos lá: tomai daquele nome, inventado para meu desdouro, fazei
dele um troféu e um lábaro, e eu vos darei tudo, tudo, tudo, tudo, tudo,
tudo...
Era assim que falava, a princípio,
para excitar o entusiasmo, espertar os indiferentes, congregar, em suma, as
multidões ao pé de si. E elas vieram; e logo que vieram, o Diabo passou a
definir a doutrina. A doutrina era a que podia ser na boca de um espírito de negação.
Isso quanto à substância, porque, acerca da forma, era umas vezes sutil, outras
cínica e deslavada.
Clamava ele que as virtudes aceitas
deviam ser substituídas por outras, que eram as naturais e legítimas. A
soberba, a luxúria, a preguiça foram reabilitadas, e assim também a avareza,
que declarou não ser mais do que a mãe da economia, com a diferença que a mãe era
robusta, e a filha uma esgalgada. A ira tinha a melhor defesa na existência de
Homero; sem o furor de Aquiles, não haveria a Ilíada: "Musa, canta
a cólera de Aquiles, filho de Peleu..." O mesmo disse da gula, que
produziu as melhores páginas de Rabelais, e muitos bons versos de Hissope;
virtude tão superior, que ninguém se lembra das batalhas de Luculo, mas das
suas ceias; foi a gula que realmente o fez imortal. Mas, ainda pondo de lado
essas razões de ordem literária ou histórica, para só mostrar o valor
intrínseco daquela virtude, quem negaria que era muito
melhor sentir na boca e no ventre os bons manjares, em grande cópia, do que os
maus bocados, ou a saliva do jejum? Pela sua parte o Diabo prometia substituir
a vinha do Senhor, expressão metafórica, pela vinha do Diabo, locução direta e
verdadeira, pois não faltaria nunca aos seus com o fruto das mais belas cepas
do mundo. Quanto à inveja, pregou friamente que era a virtude principal, origem
de propriedades infinitas; virtude preciosa, que chegava a suprir todas as
outras, e ao próprio talento.
As turbas corriam atrás dele
entusiasmadas. O Diabo incutia-lhes, a grandes golpes de eloqüência, toda a
nova ordem de coisas, trocando a noção delas, fazendo amar as perversas e
detestar as sãs.
Nada mais curioso, por exemplo, do que
a definição que ele dava da fraude.
Chamava-lhe o braço esquerdo do homem;
o braço direito era a força; e concluía: Muitos homens são canhotos, eis tudo.
Ora, ele não exigia que todos fossem
canhotos; não era exclusivista. Que uns fossem canhotos, outros destros;
aceitava a todos, menos os que não fossem nada. A demonstração, porém, mais
rigorosa e profunda, foi a da venalidade. Um casuísta do tempo chegou a
confessar que era um monumento de lógica. A venalidade, disse o Diabo, era o
exercício de um direito superior a todos os direitos. Se tu podes vender a tua
casa, o teu boi, o teu sapato, o teu chapéu, coisas que são tuas por uma razão
jurídica e legal, mas que, em todo caso, estão fora de ti, como é que não podes
vender a tua opinião, o teu voto, a tua palavra, a tua fé, coisas que são mais
do que tuas, porque são a tua própria consciência, isto é, tu mesmo? Negá-lo é
cair no absurdo e no contraditório. Pois não há mulheres que vendem os cabelos?
não pode um homem vender uma parte do seu sangue para transfundi-lo a outro
homem anêmico? e o sangue e os cabelos, partes físicas, terão um privilégio que
se nega ao caráter, à porção moral do homem? Demonstrado assim o princípio, o
Diabo não se demorou em expor as vantagens de ordem temporal ou pecuniária;
depois, mostrou ainda que, à vista do preconceito social, conviria dissimular o
exercício de um direito tão legítimo, o que era exercer ao mesmo tempo a
venalidade e a hipocrisia, isto é, merecer duplicadamente.
E descia, e subia, examinava tudo,
retificava tudo. Está claro que combateu o perdão das injúrias e outras máximas
de brandura e cordialidade. Não proibiu formalmente a calúnia gratuita, mas
induziu a exercê-la mediante retribuição, ou pecuniária, ou de outra espécie;
nos casos, porém, em que ela fosse uma expansão imperiosa da força imaginativa,
e nada mais, proibia receber nenhum salário, pois equivalia a fazer pagar a
transpiração.
Todas as formas de respeito foram
condenadas por ele, como elementos possíveis de um certo decoro social e
pessoal; salva, todavia, a única exceção do interesse. Mas essa mesma exceção
foi logo eliminada, pela consideração de que o interesse, convertendo o
respeito em simples adulação, era este o sentimento aplicado e não aquele.
Para rematar a obra, entendeu o Diabo
que lhe cumpria cortar por toda a solidariedade humana. Com efeito, o
amor do próximo era um obstáculo grave à nova instituição. Ele mostrou que essa
regra era uma simples invenção de parasitas e negociantes insolváveis; não se
devia dar ao próximo senão indiferença; em alguns casos, ódio ou desprezo.
Chegou mesmo à demonstração de que a noção de próximo era errada, e citava esta
frase de um padre de Nápoles, aquele fino e letrado Galiani, que escrevia a uma
das marquesas do antigo regime: "Leve a breca o próximo! Não há
próximo!" A única hipótese em que ele permitia amar ao próximo era
quando se tratasse de amar as damas alheias, porque essa espécie de amor tinha
a particularidade de não ser outra coisa mais do que o amor do indivíduo a si
mesmo. E como alguns discípulos achassem que uma tal explicação, por
metafísica, escapava à compreensão das turbas, o Diabo recorreu a um apólogo:
— Cem pessoas tomam ações de um banco,
para as operações comuns; mas cada acionista não cuida realmente senão nos seus
dividendos: é o que acontece aos adúlteros. Este apólogo foi incluído no livro
da sabedoria.